quarta-feira, dezembro 01, 2010

voar.

é com amor que eu entendo o contrato.e não depois de lê-lo e mas sim de sentí-lo.sentir em cada gesto a tentativa de ser crisálida novamente pelo simples prazer de desabrochar em borboleta.Pra entender o tempo todo que voar é recomeço.



quarta-feira, novembro 03, 2010

miguel torga

Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...

terça-feira, outubro 26, 2010

hora absurda

HORA ABSURDA
O TEU SILÊNCIO é uma nau com tôdas as velas pandas... Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso... Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto... Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte... Abre tôdas as portas e que o vento varra a idéia Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões... Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões... Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora, E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela... Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora... No meu céu interior nunca houve uma única estrela... Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto... A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido... Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido... Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro, Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há, Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, E a minha bondade inversa não é nem boa nem má... Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos... Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas... Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas... E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos... Ah, como esta hora é velha!... E tôdas as naus partiram! Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam... O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono... Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada... A doida partiu todos os candelabros glabros, Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas... E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros... E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?... Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar Tôdas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido... O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar, E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido... Já não há caudas de pavões tôdas olhos nos jardins de outrora... As próprias sombras estão mais tristes...Ainda Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora Um como que eco de passos pela alamêda que eis finda... Todos os ocasos fundiram-se na minha alma... As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios... Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma, E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios... Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras... Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente... Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol! Tôdas as princesas sentiram o seio oprimido... Da última janela do castelo só um girassol Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido... Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!... Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?... Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?... E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te... E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho... Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te, E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho... Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?... Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque --- Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo, Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque... Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos.... Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim... O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos, E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim... Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir... Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem... Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir, O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem... É preciso destruir o propósito de tôdas as pontes, Vestir de alheamento as paisagens de tôdas as terras, Endireitar à fôrça a curva dos horizontes, E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras... Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!... Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como nos desalegra!... Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra... Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce... Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito... A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece, E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito... Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!... Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!... Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal, Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema --- Vitória! O que é que me tortura?... Se até a tua face calma Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos... Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos... 



 

terça-feira, agosto 10, 2010

segunda-feira, agosto 02, 2010

exposição.

Amor desprotege mesmo.Te faz abrir a porta sem olhar o olho mágico, receber estranhos no seu corpo, baixar a guarda.Esfolia a pele te expõe abre o mundo pra inúmeras possibilidades que você nem enxergava antes, pois há um mês atrás sua ambição maior era achar a fórmula conciliadora entre trabalho na segunda e farras do fim de semana.Te faz trocar de xampu, de roupas de rotina.De perspectivas e de sonhos.Faz o mundo parecer bem menos cansativo e tedioso.Você nem reclama mais quando demoram pra entregar a pizza, ou quando tem que fazer algo num momento inesperado.Amor aplaca o tédio humano de querer tudo urgente e pra ontem.Sossega o corpo te deixa naquela sensação de pós banho depois de um dia inteiro no sol.Muda aos poucos mas muda.Por isso mesmo que nem percebemos quando é mesmo amor e quando percebemos já foi.Todos tem medo de mudanças e amor é aquela coragem tímida de criança desbravando um parque de areia.  

sexta-feira, julho 23, 2010

a mão.

Quando pequenos, geralmente para atravessar a rua, olhamos para cima e esperamos que o adulto nos ceda a mão para , então, prosseguirmos.Só de sentir o tato quente nos endossando de algum modo já nos faz ensaiar o movimento.Algumas crianças confiam tão seguramente nos adultos que sequer olham para os lados.Isso não é com elas.Quem já atravessou é que sabe o momento.Basta ir junto.
Sem notar passamos o resto da vida esperando essa aprovação segura para até o outro lado, mesmo que não esteja carro algum vindo.Os elogios diante de uma boa nota numa prova, ou mesmo algo simples como que roupa usar.Grandes e adultos pensamos estar com autonomia suficiente para desafiar o mundo até alguém falar mal da sua blusa preferida e estragar seu dia, e ter consciência que nem tudo é somente aprovação.Faz parte conviver com algum tipo de rejeição, olhar pra dentro e se ver as vezes num mar de inseguranças e incertezas.
É nesse momento é que a mão mais me faz falta.Quando olho pra dentro e não sinto por perto um tato superior pra me indicar que tenho um pilar de algum modo.É ser criança e ficar esperando olhando pro alto e a mão simplesmente não ser concedida.E ficar esperando o dia todo que apareça a tal certeza pra fazer com que me mova um passo para chegar ao outro lado.Sei, faz parte de amadurecer ir sozinho, mas a verdade é que ainda me sinto sem casaco num dia de muito frio.Ando por andar e não por conforto.

domingo, julho 18, 2010

ter.

eu tenho amor e por isso morro
eu sou amor e por isso vivo.

divina comédia.

Da fantasia a força me fugiu; o meu desejo e a minha vontade estavam conformes o divino querer,tal como uma roda ,que gira, uniformimente impelida
pelo amor,que move o Sol e as outras estrelas.





imagem arquivada também no relicário.

quinta-feira, julho 15, 2010

perfume

Soube que ele passou muito tempo com meu cheiro no corpo, pois quando tomava banho, vestia a mesma camisa que usou no nosso último abraço.Só pra sentir o perfume e depois retirava.Pra dar a entender para si mesmo, que nosso encontro se repetiu por todos os outros dias.Um dejavú planejado com cuidado.Para que não se rompesse o momento, como perfume que se perde ao ar.



meu sonho também tem o seu cheiro.

terça-feira, julho 13, 2010

Carolina

Machado de assis possui poucas coisas escritas sob forma de poema, fruto claro da transição da literatura brasileira ,(que passou muito tempo baseada na poesia e em temáticas voltadas para o romantismo como espelho da tendência européia, especialmente portuguesa) para a prosa e para um estilo mais cético de ver a realidade.Porém por ser um ícone de transição, machado de assis apresenta alguns textos relacionados ainda ao romantismo e a poesia lírica, embora seja conhecido em termos literários como pai do realismo por obras clássicas como quincas borba e dom casmurro.Segue anexo um scan de um desses textos poéticos.Texto arquivado também no relicário.
 


domingo, junho 27, 2010

A dignidade da arte




Eu escrevo para os que não podem me ler. Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não tem com o quê.
Quando chega o desânimo, me faz bem recordar uma lição de dignidade da arte que recebi há anos, num teatro de Assis, na Itália. Helena e eu tínhamos ido ver um espetáculo de pantomima, e não havia ninguém. Ela e eu éramos os únicos espectadores. Quando a luz se apagou, juntaram-se a nós o lanterninha e a mulher da bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram
sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.
Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós aplaudimos até esfolar as mãos.
Eduardo Galeano em O livro dos abraços

sábado, junho 26, 2010

carta.


São Paulo, 12 de agosto de 1987.

Querida mãe, querido pai,
Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.

Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado.
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la.

Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.

Amo vocês, seu filho,
Caio.

segunda-feira, junho 14, 2010

aline.

aline
você me faz criar sonhos do mesmo modo que um escritor escreve facilmente um conto de fadas.
eu vejo você desenhar em mim um futuro novo e cheios "de depois de amanhã eu passo aqui pra te amar de novo" e nesse momento quase deixo de ter mazelas e passo a ser perfeita sob a linha guia da tua caneta.e olha que eu havia te dito ontem que eu não queria mais falar de cor porque aquarelas sempre dão mais trabalho que nanquim, mas você pega todas as cores e as ajusta ao meu eu com tanta maestria que quase esqueço que preto branco é aquilo que sempre foi meu e em como eu me atrapalho ao tentar por cor nas coisas e ordem aos quadros.
você precisa parar com isso de tentar me fazer como você porque é capaz de eu acreditar em tudo que acreditei um dia.E catrastroficamente me tornar um ser humano muito melhor do eu sou.

segunda-feira, maio 31, 2010

chave.

Apesar das recomendações sobre que isto pode me adoecer, eu tenho pensado nele sim.Não só imaginado, mas sentido, provado como num sonho cheio de sinestesia.Tenho me olhado no espelho e conseguido te ver pedaço por pedaço letra por letra verbo por verbo.Apesar de me dizerem que não posso te sentir com minha pele eu tenho sim tentado te tocar como criança pequena tenta guardar uma brisa com os mãos.E eu me concentro nesse exercício nem sempre saudável de tentar com todos os meus recursos estar mais perto ,cada vez mais perto de você para ver se crio novas memórias para este corpo cansado.


Olá meu futuro.Eu não quero desistir de te provar nunca.

terça-feira, maio 25, 2010

dois dias.

Tomei banho mas não fui capaz de me vestir.Percebi que no frescor da minha nudez é que meu corpo se demonstra pronto pra ser visto.Me enxergue.
Posso ver também com clareza que o amargo pode ser servido em lindos papéis de presente.
E que a doçura vem tão singela que as vezes a ignoramos, pensando ser um mendigo.

quarta-feira, maio 19, 2010

textos

Meu corpo também é texto


e é nele


que linha por linha


vou escrevendo aos poucos todos os modos de ser tua.

sexta-feira, maio 14, 2010

paul michel foucault

 Esse é um dos meus textos prediletos.É comprido para este mundo corrido de blogs e de típicos comentários blogueiros e talvez esse blog não seja um blog para os outros mas muito mais pra mim.Eu gosto de vir e olhar todos os meus gostos em todos os detalhes.

De todo modo a reflexão  de foucault é única em termos de profundidade e concisão.Vale sempre a perna ser lido


Marcelo Coelho traduziu parte de uma conferência ainda inédita de Michel Foucault, chamada Le corps, lieu d´utopies (de 1966)( o corpo lugar de utopias)


Basta eu acordar, diz Foucault, que não posso escapar deste lugar, o meu corpo. Posso me mexer, andar por aí, mas não posso me deslocar sem ele. Posso ir até o fim do mundo, posso me encolher debaixo das cobertas, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente: não está nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia. Todos os dias, continua Foucault, eu me vejo no espelho: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, nenhum cabelo mais... Verdadeiramente, nada bonito. Meu corpo é uma jaula desagradável. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. É o lugar a que estou condenado sem recurso.
É possível que contra esse corpo tenham nascido todas as utopias, dele nasce a utopia original --a de um corpo incorporal: o país das fadas, dos elfos, dos gênios, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde podemos ficar invisíveis.
Há outra utopia dedicada a desfazer o corpo é o país dos mortos. A múmia é o corpo utópico que desafia o tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos, que prolongam uma juventude que nunca vai passar, que será eterna. Meu corpo se torna sólido como uma coisa, e eterno como um deus.
A outra, a maior utopia criada contra o corpo é o grande mito da alma, que funciona maravilhosamente dentro do meu corpo, mas escapa dele. É bela, pura, branca, ao contrário do meu corpo. Durará para sempre. É meu corpo luminoso, purificado.
Assim, pela mágica dessas utopias, meu corpo pesado e feio desaparece magicamente. Recebo-o de volta fulgurante e perpétuo.
Mas meu corpo, nele mesmo, seus recursos próprios de fantástico. Tem lugares sem-lugar. Tem seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça é uma estranha caverna, com duas aberturas, meus olhos. E, se as coisas entram na minha cabeça, ficam ao mesmo tempo fora delas.
Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Absolutamente visível --porque sei o que é ser visto e ver os outros. Mas esse corpo é também tomado por uma certa invisibilidade: minha nuca, por exemplo. Minhas costas: conheço seus movimentos, sua posição, mas não as vejo. Corpo que é um fantasma, que só posso ver pelo truque, pela miragem de um espelho.
Esse corpo não é uma coisa: anda, mexe, quer, se deixa atravessar sem resistências por minhas intenções. Só quando estou doente –dor de estômago, febre--  ele se torna coisa, opaca, independente de mim.
Não, o corpo não precisa de fadas e almas para ser utópico, visível e invisível, transparente e concreto. Para que eu seja utopia, preciso apenas ser... um corpo. As utopias não apagam o corpo: nasceram dele, para só depois, talvez, voltarem-se contra ele.
Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. O sonho de um corpo imenso, o mito dos gigantes, de Prometeu, é uma utopia. O sonho de voar também.
O corpo é também ator utópico quando se pensa nas máscaras, na tatuagem, na maquiagem. Não se trata, aqui, propriamente, de adquirir um outro corpo, mais bonito ou reconhecível.
Trata-se de fazer o corpo entrar em comunicação com poderes secretos, forças invisíveis. Uma linguagem enigmática e sagrada se deposita sobre o corpo, chamando sobre ele o poder de um deus, a força surda do sagrado, a vivacidade do desejo. Fazem do corpo o fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo dos outros, dos deuses, das pessoas que queremos seduzir.
O corpo é arrancado de seu espaço próprio e arremessado a um outro espaço. As vestimentas religiosas, por exemplo, fazem o indivíduo entrar no espaço cercado do sagrado, ou na comunhão da sociedade. Tudo o que toca no corpo, uniformes, diademas, faz florescerem as utopias internas do corpo.
E a carne nela mesma pode ser também utópica. Faz o corpo voltar-se contra si: o outro mundo, o contra-mundo, penetra nesse corpo, que se torna produto de seus fantasmas: o corpo de um dançarino, por exemplo, é um corpo dilatado pelo espaço –espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo. O corpo do mártir acolhe a dor e a salvação. O corpo de um drogado, de um possuído, de um estigmatizado, recebe em si o que lhe é exterior.
Bobagem dizer portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar. Meu corpo está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e está num outro lugar que é o além do mundo. É em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um embaixo e um em cima.
O corpo está no centro do mundo, nódulo utópico a partir do qual penso, sonho, me comunico. O corpo, como a Cidade de Deus, não tem lugar, e é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis.
Apenas o espelho e o cadáver selam e calam essa voragem utópica. Os dois estão num outro lugar impenetrável, mas nesse momento já não sou eu mesmo. Para que eu seja eu mesmo, no meu corpo, sem utopia, é preciso uma situação bem definida. Só o ato amoroso, quando nos entregamos a ele, acalma a utopia do nosso corpo: por isso é tão próximo, no imaginário, ao espelho e à morte. É porque só no amor o meu corpo está AQUI.

quarta-feira, maio 05, 2010

Serpentes.


Eu tenho uma natureza orgulhosa.Orgulhosamente fechada.E um não sei que de tristeza vem sempre me invadindo quando menos espero.Me abraço a ela.Crio um apego de mãe pela cria,porque imploro por sentir algo.E quando menos espero estou eu e ela unha em carne,num entrelaçamento sensual que sequer sou capaz de distinguir ela de mim.como duas serpentes mordendo a mesma maçã de eva permaneço por horas nesse quadro apático e frio que nem mesmo o calor da manhã e do dia que amanhece inteiro entre carros palavras e passos faz dissipá-lo.
Você ainda está em mim.

(A.C.Silva)







 É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.

Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

(jorge luís borges)

sábado, abril 24, 2010

só pode ser poesia



Deus eu não sei o que faço de mim
Não sei o que faço com as noites em claro
Não sei o que faço com meu sangue que corre ao contrario
Não sei o que faço com meus esquecidos horários
Não sei o que faço com as minhas preces
Não sei o que faço com minhas vestes
Não sei o que faço da minha necessidade
Não sei o que faço com minha pouca idade
Não sei o que faço com meus eixos desalinhados
Não sei o que faço com meus pontos perdidos e alinhavados
Não sei o que faço pra achar um novo começo
Não sei o que faço para criar um novo fim
Deus eu não sei o que faço de mim.






*talvez ninguém saiba

*e o que eu sinto só pode ser poesia.

terça-feira, janeiro 19, 2010

Um caso.

Eu tenho orgulho do meu Deus anarquista.De não ter um olhar vazio diante de coisas cheias muito cheias.De valores, e subjetivismos que realmente importam.

Eu sinto ter a forma de um eldorado desconhecido

Até para mim mesma.